segunda-feira, 25 de agosto de 2014

A hora do conto - Uma carta

O carteiro achava estranho, nunca tinha levado uma carta, encomenda ou postal para aquela morada. Achava até ainda mais estranho o facto daquela rua fazer parte do seu giro e não se lembrar da casa. Conhecia perfeitamente aquela zona. Era, aliás, toda uma aldeia que ele fazia sozinho e onde viviam poucas famílias. Ele sabia que a cidade era mais apetecível e que todos acabavam um dia por fugir. Mas ele não, ele tinha um bom emprego e gostava de andar na sua motorizada pelos caminhos da aldeia, alguns ainda de pedra e outros que nunca tinham visto macadame na vida.

Olhou diversas vezes para a carta. Era todo um mistério. O papel do envelope parecia gasto, amarelado. E parecia uma carta pessoal, coisa rara neste mundo dos computadores e dos automatismos. Estava mais habituado às cartas da electricidade ou da segurança social para os velhotes reformados. Conhecia-os a todos pelo nome e sabia quase tudo das suas vidas pacatas. Eles contavam as façanhas de quando eram novos e o carteiro tentava sempre abreviar senão atrasava as suas entregas e nunca mais chegava a casa.

Ele morava numa vila lá ao pé. Era pouco maior que essa aldeia, mas já tinha outro estatuto, o de Vila! Era diferente, dispunha de mais serviços e era aí que queria regressar depois de tantas cartas e encomendas, queria voltar a casa e apreciar o melhor momento do dia: sentar-se no seu jardim, respirar fundo, enquanto segurava uma cerveja com uma mão e dava uma festa no seu cão com a outra. Era a sua companhia e para ele bastava. E era a esse silêncio que ele gostava de regressar, depois de tantas conversas e histórias dos velhotes da aldeia. Não é que não gostasse da conversa deles, ele ficava muito entusiasmado porque alguns teriam vivido aventuras fantásticas, em tempos não tão fantásticos que o país viveu. Sabia também que devia de existir algum exagero, por isso dizia que eles eram como os pescadores: acrescentavam sempre tamanho ao pescado.

Voltou a olhar para a carta: letra fina, inclinada, uma verdadeira obra de arte. Que raio, já não se enviam cartas assim, pensou ele. Se pudesse apostar diria que era letra de mulher. As curvas das letras eram ondas harmoniosas que subiam e desciam, todas juntas perfazendo as palavras "Rua dos Girassóis". O número 10 parecia quase demasiado perfeito e direitinho, quase que passaria por impressão, não fossem os borrões de tinta ali ao lado. Por um momento pensou que gostava de ter tido aquela letra na primária. Nunca fora muito bom na escola e a sua letra então, era um pesadelo. Os professores sempre ralharam com ele porque não se percebia nada do que escrevia. Mas ele nessa altura não queria saber de escritas, gostava era do recreio e de dar pontapés na bola. Esta letra parecia efeminada e o nome era estrangeiro mas parecia ser de uma mulher. Ainda assim, preferia esta letra à sua. E parecia ser de alguém com estudos, algo que também lhe escapou na vida.

Distraído com a letra nem se apercebeu que continuava em cima da mota, parado no início da Rua dos Girassóis. Pensou em avançar à procura da tal casa, mas houve algo que o distraiu: o selo. Ele conhecia aquele selo. Nas suas horas vagas gostava de ler sobre selos mas não se atrevia a fazer colecção, isso era muito trabalhoso e andar a arrumar selos mínimos com uma pinça não era para ele. Era um selo que comemorava o centenário do selo postal. Mesmo não sendo bom  matemática, o carteiro rapidamente percebeu que algo estaria errado, pois o primeiro selo postal foi em 1840. A memória era fraca, mas ele percebia da história dos correios! E se era o centenário, o selo seria de 1940. Não podia ser, não fazia sentido. Decidiu sair da mota, retirar o capacete e os óculos escuros e colocar os seus outros óculos para ver melhor. A miopia já o afectava há muitos anos e, apesar de ver relativamente bem, não queria ter dúvidas. E aí estava ele. Tinham feito em várias cores, mas naquele envelope estava a versão laranja do selo, que correspondia a 25 centavos. Na imagem estava Sir Rowland Hill, e por baixo "1840 Maio 1940 - Centenário do Sêlo Postal". Ao concluir que se tratava de algo antigo, e quiçá, valioso, percebeu que seria uma brincadeira muito tonta enviar uma carta com um selo tão antigo. Mas, espera, e como é que a carta passou pelos serviços centrais? - pensou o carteiro. Viu de onde vinha a carta: de Lisboa. O mistério adensava-se: como é que uma carta com um selo que não está válido chegou até aqui, tão perto do seu destino? E o nome do emissor era afrancesado, mas não tinham colocado nome no destinatário. A única solução seria a de procurar a casa.

Assim fez, voltou a arrumar os óculos da miopia, colocou os seus óculos de sol e o capacete. Mesmo que fossem apenas uns metros, o carteiro não brincava em serviço, e o medo de cair de mota e de se aleijar estava sempre patente quando dava a volta à chave. Equipado e preparado, com a carta na mão e a tremer de curiosidade começou a procurar as casas. Encontrou o número 4, não era difícil, era a casa da Dona Lurdes, sempre com o estendal cheio de roupa branca ao sol. Ele indagava-se como é que uma senhora viúva que sempre viu vestida de preto sujava tanta roupa branca. Prosseguiu devagar e passou pelo número 6, do Sr. Silva. Uma casa cheia de muros e bem tapada, e também cheia de cães que o carteiro detestava. Eram daqueles cães que gostavam de perninhas de carteiro à refeição, desconfiava ele. O número 8 não existia, era um terreno limpo com uma ou outra árvore. Um dia tinha ouvido o senhor Silva dizer que era um terreno abandonado porque estava em processo de partilhas e estava para ser vendido há anos mas que ninguém se entendia.

Ao continuar encontrou o número 12. Era uma casa fechada, de uns emigrantes no Luxemburgo que raramente precisavam do carteiro. Estranhou, parecia que tinha falhado o número 10. Andou para trás e lá viu o portão enferrujado do terreno abandonado com um grande oito, pintado a tinta há anos. Decidiu parar a mota e investigar a pé. Antes do número 12 percebeu que, no seguimento do terreno abandonado, existia uma série de arbustos muito cerrados que seguiam até à casa dos emigrantes. Ao olhar calmamente e quando se aproximou, apercebeu-se de um pequeno muro, ou o que restava dele, com uma caixa de correio muito velha mas com um número 10 muito nobre e pomposo. Apercebeu-se que, atrás daqueles arbustos estava uma casa. Estranhou, pois não sabia que ali poderia morar alguém, pelo menos nunca lhe tinham dito nada lá na aldeia. Ao olhar melhor para a casa ficou congelado e sem saber o que pensar. A casa estava em ruínas. Era impossível morar lá alguém. O telhado já tinha desaparecido há muito tempo, as portas e janelas não existiam e se houve ali um jardim ou uma entrada, há muito que tinham sido engolidos pela Natureza. Os pássaros cantavam felizes, pousados nos ombrais, e claramente que viviam por ali muitos gatos.

O carteiro ficou sem saber o que fazer. Sentia-se perdido, estarrecido, embasbacado! Tinha nas mãos uma carta antiga com mais de 70 anos, não sabia como é que essa carta tinha passado pelos correios, e o destino era uma casa desabitada, em ruínas, completamente acabada. A vontade de abrir aquela carta aumentou em flecha, mas ele sabia que só havia uma coisa a fazer: deixar a carta na caixa de correio e ir embora. Talvez voltasse no dia seguinte para ver se a carta ainda lá estava. E ia claramente falar com o Sr. Silva, ele poderia saber mais coisas sobre aquela casa!

Assim fez. Mas nessa noite nem dormiu. E quando dormia sonhava com selos, o que não era novidade, mas estes eram selos antigos que o empurravam de encontro a umas paredes altas, como se estivesse num antigo palacete. No meio dessas paredes reconheceu a caixa de correio da casa abandonada, mas quando tentava chegar a ela, ela fugia, rastejando parede acima. Acordou mais cedo do que o normal e decidiu levantar-se. Achava que era demais estar a ficar louco por tão pouco.

Logo cedo, mudou a sua volta habitual para que pudesse passar na casa do Sr. Silva. Ficou ainda mais satisfeito quando viu que tinha uma carta das águas para ele. Desta vez ia entregar pessoalmente, não ia deixar na caixa de correio! Não ia ficar nada contente, o Sr. Silva não gostava de receber contas e culpava sempre o carteiro pelas más novas. Mas antes não resistiu a ir ao número 10 para espreitar a caixa e tentar perceber se a carta lá estava. A abertura não era muito grande, por isso não era possível ver muito lá para dentro. Mas este artesão de caixas de correio conseguiu tirar uma foto com o telemóvel para perceber se a carta jazia no fundo da caixa. Quando viu a foto ficou estarrecido. Folhas velhas, era tudo o que era pertença daquela caixa, folhas velhas e secas... Não pode ser, pensou. Alguém tinha retirado a carta e isto só podia ser uma brincadeira de muito mau gosto, pensou ele enquanto abanava a cabeça em sinal de desaprovação. Viu que a caixa tinha a fechadura calcinada e que estava intacta, e desta forma não podia ter sido aberta. Não pode ser, repetia ele. Tentou colocar a mão na abertura para perceber se a carta podia ter sido retirada por aí, mas era impossível. Nem que fosse uma mão de criança, a caixa era funda e a abertura não era muito grande. Ainda ficou ali uns minutos a tentar reestabelecer-se. Não fazia sentido.

Como que a acordar de um transe, voltou a focar os olhos e decidiu ir ter com o Sr. Silva. Tenho de tirar isto a limpo, pensou. Se alguém veio aqui, pelo menos os cães do Sr. Silva teriam ladrado. Ao falar com o Sr. Silva, este confirmou que foi uma noite tranquila. "Sabe que às vezes os cães ladram até com uma mosca, mas esta noite foi uma paz. E eu sei porque eu só me deito pela madrugada adentro!". Não pode ser, repetia ele dentro da sua cabeça. Perguntou pela casa ali à frente, antes da casa dos emigrantes. O Sr. Silva quase que se engasgou, e este não era homem para se engasgar, mesmo com 80 e tantos anos. A sua voz parecia sumida: "Ah menino, isso é uma história muito triste, não queira saber." Mas conte-me senhor Silva, disse o carteiro cheio de esperança de obter respostas. "Era de um americano. Pouco me lembro da cara dele, mas os meus pais conheciam-no e ficaram muito tristes com o que se passou. Parece que andava enamorado com uma francesa que simplesmente desapareceu. Era um amor que só visto, mas naquela altura, sabe, não havia cá internetes, e nesta terra não havia cá telefones. Ela foi para Lisboa e depois para a França e ele esperou por uma carta que ela prometeu enviar quando voltasse à nossa capital, tá a ver? Mas a carta nunca apareceu, e as cartas que ele enviava para ela vinham devolvidas. E ele ficou anos sem saber nada dela, mas também não podia sair daqui porque era procurado lá fora, tá a ver? E isto lá para os anos 40, tá a ver? O que vale é que eu tenho boa memória. Então um dia, farto de esperar por ela, enforcou-se. E foi o meu pai que deu com o pobre." O carteiro respirou fundo, agradeceu a informação e ficou feliz por ter deixado a carta no número 10, ao que parece, as notícias da francesa tinham finalmente chegado ao seu destino.

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